Ana Cristina Vargas
É raro, no meio espírita, comentar-se sobre autoconhecimento sem fazer referência ao pensamento de Santo Agostinho, exposto na questão 919 de O Livro dos Espíritos. Nela o tema foi tratado diretamente em preciosos quatro parágrafos, encerrando uma receita.
O conhecimento espírita desperta um anseio pelo progresso que nos faz pedir que nos apontem caminhos. O Codificador pediu aos espíritos superiores a fórmula da melhoria pessoal, e não pediu para as próximas encarnações, pediu para esta vida e ousou mais: tinha que ser prática e eficaz.
Respondeu-lhe o Espírito Santo Agostinho, dizendo: “Um sábio da Antiguidade
vos disse: Conhece-te a ti mesmo.”
Referia-se a Sócrates e apontou a necessidade de focarmos os interesses na busca por e em nós mesmos. Ouve-se muito: “Conheço fulano como a palma da minha mão, ele não me engana.” Ou seja, conheço o outro, conheço para fora, mas quando perguntam “Quem é você?”, dizemos um nome que nem ao menos foi de nossa livre escolha e completamos informando profissão, estado civil e endereço. Pronto, qualquer um nos encontra, o que não significa um encontro pessoal.
O Codificador retruca reconhecendo a sabedoria da resposta, mas alegando dificuldades para se atingir o conhecimento interior e insiste no pedido de uma receita. Disse Jesus: “Pedi e obtereis.” Ele obteve a fórmula e a legou àqueles que em si descobrem esse anseio.
Ensinou o interrogado: “Fazei o que eu fazia de minha vida sobre a Terra: ao fim da jornada, eu interrogava minha consciência, passava em revista o que fizera, e me perguntava se não faltara algum dever, se ninguém tinha nada a lamentar de mim.”
Estava dada a receita da espiritualidade prática e eficaz para melhorar já nesta vida: conhecer a si mesmo examinando a consciência.
Mas como se faz um exame de consciência? Será que basta rememorar os acontecimentos do dia e verificar como nos comportamos, se fomos gentis, cordiais, caridosos, se cumprimos nossos deveres profissionais, familiares, se fizemos prece etc.? Talvez temeroso de que caíssemos nesta simplificação, ele especificou que o modo de fazer é realizar um interrogatório preciso e diário a si mesmo sob o amparo de Deus e do anjo guardião. Ele sugeriu que colocássemos para nossa reflexão ao menos cinco questões, a saber:
1) “Perguntai-vos o que fizeste e com qual objetivo agistes em tal circunstância”.
A primeira parte da questão é tranqüila, basta recordar as atitudes do dia. A segunda aprofunda- se pedindo para identificarmos os objetivos de nossas ações, os interesses e propósitos que as motivaram, os quais podem estar escondidos muito fundo, num canto sombrio do nosso ser, e ainda se apresentarem mascarados.
2) “Se fizeste alguma coisa que censurais em outrem”.
A nossa capacidade de olhar para fora é bem desenvolvida, então vamos aproveitar e conhecer o que estamos projetando. É sempre fácil apontar erros, condenar e exigir dos outros esquecendo que só conseguimos reconhecer aquilo que também possuímos. Esse é um procedimento importante da receita que se repetirá.
3) “Se fizeste alguma coisa que não ousaríeis confessar”.
Um questionamento ético em relação à minha conduta com o próximo e também pessoal, na medida em que devemos responder se tudo o que pensei, senti e fiz pode ficar exposto à luz? Ou falta coragem para assumir opiniões, atitudes, vontades, o “eu” e as motivações reais e profundas das minhas ações, que somente eu e Deus podemos saber quais são.
4) “Se aprouvesse a Deus me chamar neste momento (em que estou lendo está página), reentrando no mundo dos Espíritos, onde nada é oculto, eu teria o que temer diante de alguém?”.
Queremos distância da morte. Não é agradável pensar nela ou falar sobre ela. Aceitá-la não é fácil, trabalhar as perdas é um processo doloroso e delicado. Imagine pensar na própria morte, diariamente. Frente a cada decisão, refletir como ficaria a situação se morrêssemos naquele momento. Brigamos com um filho, ou com o marido, ou com um amigo, ficamos magoados, com raiva e morremos num ataque fulminante do coração. Que situação! Essa questão nos põe em xeque com um mundo onde as máscaras não enganam senão quem as usa. Se pensarmos sob esse enfoque, mudaremos muitas atitudes.
5) “Examinai o que podeis ter feito contra Deus, contra vosso próximo, e enfim, contra vós mesmos”.
Discutimos muito as nossas relações amorosas, profissionais e familiares, mais ou menos nessa ordem de prioridade. Mas a relação com Deus vai entre tapas e beijos e não paramos para discuti-Ia. Começa que Dele nem sempre fazemos um juízo claro, a nossa resposta pessoal é em geral vaga ou politicamente correta. Confundimos repetição mecânica de palavras com falar com Ele. Nós o bendizemos quando a vida corre como desejamos, mas é sobre Ele que lançamos nossas incompreensões e ingratidões quando as coisas não são como queríamos. Por fim, Ele é o cangaceiro das nossas vinganças, cada vez que vencidos pela ira desejamos o mal ao próximo e não o realizamos com as próprias mãos. Mas, ironicamente, embora O contratemos para nossas desforras, ainda O tememos. E uma relação complicada: nós a vivemos com uma grande dose de irreflexão misturada ao medo, à ira, à ingratidão. Temos um comportamento mimado e não apto ao diálogo.
Desta tríade, a relação com o outro é a mais debatida, só que em geral sob a ótica de vítima: “O que eles fizeram comigo”. O convite é para largarmos essa postura e assumirmos nossas responsabilidades.
A relação conosco é outra e apenas em circunstâncias limites começamos a discutír. Falamos muito sobre reencarnação, obsessão, lei de amor, depressão, sentimentos mal resolvidos, doenças, mas pouco nos perguntamos: “Por que sou e estou assim?” Como lido com as alegrias e as tristezas?”, “Cuido bem de mim, como corpo e alma?”
O autor da receita mostra conhecimento e compreensão da alma humana antecipando-se ao propor: “Mas, direis, corno se julgar? Não se tem a ilusão do amor próprio que ameniza as faltas e as desculpas?”.
Ilusões e justificativas podem comprometer o resultado e para evitar que algo saía errado na execução da receita, ele deixou também os segredinhos. Para evitar auto-enganos, façamos o seguinte:
1) “Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, perguntai-vos como a qualificaríeis se fosse feita por outra pessoa; se a censurais em outrem, ela não pode ser mais legítima em vós, porque Deus não tem duas medidas para a justiça.”
2) “Não negligencieis a opinião dos vossos inimigos, porque estes não têm nenhum interesse em dissimular a verdade e, freqüentemente, Deus os coloca ao vosso lado como um espelho para vos advertir com mais franqueza que o faria um amigo.” É o verdadeiro “te enxerga”. É uma proposta valiosa para reformularmos comportamento sobre críticas e inimizades, vendo nelas auxiliares divinos para nosso crescimento. Assim, esvazia-se a raiva e a indignação. A humildade é o caminho que acaba com a falsa superioridade que nos faz preferir ignorar as críticas e inimizades a aprender com elas.
3) “Aquele que tem vontade séria de se melhorar explore, pois, sua consciência, a fim de arrancar dela as más tendências.”
O produto da fórmula ê uma visão clara de quem somos e do que precisamos reformar. A promessa final é excelente, nada menos que uma felicidade eterna. Vale a pena conferir.
Fonte: Revista Literária Espírita Delfos . Catanduva, SP: BOA NOVA. Ano V. Ed. 03. Nº 21. 2005. p. 10-13